O drama de auto-extinção cantado por Renato Russo – “ela se jogou da janela do quinto andar, nada é fácil de entender…” – teve suas definições atualizadas para a era dos celulares em Ferrugem, de Aly Muritiba.
Na lendária música do álbum As Quatro Estações (1984), a Legião Urbana punha seu dedo pós-punk na ferida de um tabu: o suicídio adolescente e suas relações com as enroladas teias afetivas entre “Pais e Filhos”.
O refrão servia para que o poeta – aquele que Carlos Marcelo apelidou de O Filho da Revolução na brilhante biografia a ele dedicada – fizesse sua célebre pregação neorromântica em prol do ágape: “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã / porque se você parar pra pensar / na verdade não há.”
O contexto comovente que envolvia esta frase era a vida perdida de uma adolescente sem nome que havia se lançado do quinto andar, ao abraço de uma morte auto-elegida – supostamente pois não havia sido amada o bastante, ou pois nunca pôde explicar “a grande fúria do mundo”.
No livro Depois do Fim – Vida, Amor e Morte nas Canções da Legião Urbana, de Angélica Castilho e Erica Schlude, as autoras definem Renato Russo como neo-romântico, tipo um Byron brasiliense, lembrando que a morte adolescente esteve presente em outras músicas além do mega-hit “Pais e Filhos”.
No álbum de despedida A tempestade ou O livro dos dias (1996), o personagem João Roberto, dono de um Opala metálico azul, também fará sua travessia morte adentro.
Era 1996 e já vivíamos na ressaca do grunge, após o suicídio de Kurt Cobain. Renato Russo definhava em praça pública, como Cazuza antes dele, vitimado pela AIDS. O tema do suicídio, ou seja, do mistério que envolve o sujeito que se auto-aniquila, passa a interessar de novo ao poeta legionário.
Ele pinta os dias finais de João Roberto, o “Johnny”, que morre aos 16 levando ao extremo aquela lógica auto-destrutiva que havia marcado época no cinema em Juventude Transviada (Rebel Without a Causa), de Nicholas Ray, estrelado por James Dean:
“Johnny morreu ao fazer a curva do diabo, fez sua travessia na própria estrada. A morte, para o eu romântico, é o final da vida dolorosa, à qual ele não consegue se integrar. Sendo muito difícil, dentro dessa perspectiva, haver a certeza de um depois. A consciência de sua finitude angustia e acaba com as expectativas de algo além.” (Hama Editora, 2002, citado por Marcelo, p. 438)
“E os motores sairam ligados a mil
Pra estrada da morte o maior pega que existiu
Só deu para ouvir foi aquela explosão
E os pedaços do Opala azul de Johnny pelo chão
No dia seguinte, falou o diretor:
” O aluno João Roberto não está mais entre nós
Ele só tinha dezesseis,
Que isso sirva de aviso pra vocês.“
E na saída da aula, foi estranho e bonito
Todo o mundo cantando baixinho:
“Strawberry Fields Forever“
E até hoje, quem se lembra
Diz que não foi o caminhão
Nem a curva fatal
E nem a explosão
Johnny era fera demais
Pra vacilar assim
E o que dizem é que foi tudo
Por causa de um coração partido…”
Neorromântico, pós-punk, brazilian grunge – não importam os rótulos com os quais tentamos domar a obra deste artista que se foi relativamente cedo, aos 36, mas viveu o bastante para compreender, com um olhar sábio e envelhecido (evocando o provérbio em inglês wise beyond his years), os dilemas e dramas da juventude em estado de samsara.
No Brasil, poucos músicos foram capazes de retratar tão bem quanto Russo aquela atmosfera existencial e afetiva que marcou os anos 1990 nos Estados Unidos, co, epicentro em Seattle, com o movimento grunge – ele mesmo repleto de tragédias envolvendo mortes precoces (de Andrew Wood a Kurt Cobain, de Layne Stanley a Chris Cornell…).
Se o Nirvana, desde o princípio, antes da fama global de Nevermind, já explorava em Bleach todas as angústias adolescentes vinculadas a um high school samsárico, vale lembrar que também o Pearl Jam fez sua entrada triunfal no cenário rocker com um mega-hit que falava sobre suicídio escolar: “Jeremy” foi o modo que Eddie Vedder encontrou para mergulhar na psiquê atormentada de um garoto sobre o qual leu na imprensa e que se matou na frente dos colegas.
Com mais de 115 milhões de visualizações no YouTube, o clipe é um fenômeno de massa que diz muito sobre a disseminação do problema, tendo ajudado a propulsionar Ten, o álbum de estréia da banda, para o status de clássico da era grunge de que ele goza hoje.
ASSISTIR VIDEOCLIPE OFICIAL DE “JEREMY” EM 4K – SEM CENSURA:
https://www.youtube.com/watch?v=MS91knuzoOA
O cinema brasileiro fez através de Ferrugem (2018), de Aly Muritiba, vencedor de 3 Kikitos (incluindo Melhor Filme) em Gramado, uma espécie de atualização destes dramas de auto-destruição juvenil para a era dos smartphones e dos aplicativos criados pelos lordes do Vale do Silício. É um filme impressionante e que pode ser lido com auxílio dos conceitos do pensador sul-coreano Byung Chul-Chan e suas teses sobre o enxame digital.
Alerto para um baita spoiler a seguir – e o justifico falando impossibilidade de debater este filme a contento sem escrever abertamente sobre o suicídio da protagonista do filme, Tati (interpretada por Tifany Dopke). A sinopse narra que “Tati é uma adolescente normal, que divide seu cotidiano entre a escola, as amigas e as redes sociais. Quando um vídeo íntimo dela é vazado, ela enfrenta um inferno pessoal com o qual cada vez menos tem forças para lidar.”
Em um clima que evoca o da série Black Mirror, repleta de contos sombrios sobre os lados mais sinistros do ser humano que as novas tecnologias trazem à tona, Ferrugem coloca no centro do quadro o suicídio, dentro da escola, diante das câmeras de vigilância, desta adolescente que é massacrada por um revenge porn (pornografia de vingança).
Através de uma teia de causalidade inimaginável antes da era da telefonia móvel e das fissuras que isto acarreta nos sujeitos contemporâneos, ao perder seu celular… Tati acaba perdendo a própria vida. Os vídeos íntimos dela com um ex-namorado, que o espectador supõe que contenham uma boa dose de sexo oral e de nudez explícita, destravam processos de bullying contra ela entre os jovens de seu convívio – tanto presencialmente quanto nas redes sociais. É neste moedor de reputação que ela terá sua jovem vida destroçada.
Ao invés de insistir no estrangeirismo do bullying, digamos na boa gíria brasileira: Tati começa a ser massacrada pela zoeira. Os coleguinhas que a chamam de vadia, piranha, putinha ou ofensa que o valha não sabem, certamente, que suas palavras podem ter consequências sérias. Estão sendo inconsequentes e irresponsáveis, como costuma ser de fato a juventude, sobretudo quando não teve nenhum farol ético vindo de uma formação filosófica salutar desde tenra idade (uma proposta epicurista, pouco aplicada na pedagogia moderna).
Tati vê seu inferno pessoal destravado por vídeos de suas transas que acabam indo parar em sites pornô. Horrorizada, ela lê os comentários e observa a proliferação de memes grosseiros e ofensivos. Há uma discrepância de gênero nesta repercussão que Pedro Tavares destacou em resenha no Porco Espinho: “Ferrugem acerta ao mostrar as diferenças entre os ataques sofridos por Tati e seu ex-namorado, também exposto no vídeo. Enquanto o garoto segue sem maiores problemas, a menina enfrenta xingamentos vindos de todos os lados. Assuntos como machismo e masculinidade tóxica aparecem com força nesse momento, um caso onde muitas vezes a vítima acaba como culpada.”
No site Valkírias, destaca-se: “o caso retratado em Ferrugem é uma história comum. Ela não sabe a quem pedir ajuda, tem medo de decepcionar os pais e faz o possível para que eles não fiquem sabendo do que aconteceu. É um reflexo da dificuldade de entender que essas garotas são apenas vítimas. O slut-shaming que normalmente acontece depois de um caso desses é pesado, e realmente é difícil até de resistir à curiosidade mórbida de ver o que as pessoas comentam sobre o assunto nas redes sociais. A impressão é que nunca mais a vítima vai poder viver paz, nunca mais vai se ver livre dos olhares e dos comentários desconfortáveis.”
Na Parte 1 – a primeira metade de Ferrugem -, a personagem Tati é descrita em seu percurso de espiral descendente rumo ao abismo da auto-destruição. A Parte 2 – a segunda metade do filme – traz as consequências da morte de Tati nas vidas dos sobreviventes que com ela conviveram e que tem “culpa” no cartório: sobretudo René, que foi a última “ficada” de Tati antes da tragédia do leak erótico, tem seu cotidiano familiar devassado.
Descobrimos – com o perdão de outro spoiler – que foi ele o responsável por compartilhar o vídeo pornô dela num grupo de whatsapp. Sua motivação é obscura – enxergá-la é difícil como enxergar o fundo de um rio através de águas turvas. O filme, aliás, é toco um tratado sobre a incomunicabilidade, sobre a dificuldade de diálogo, sobre a escuridão de comunicação que envolve certos temas mesmo que estes pareçam estar “explodindo” por excesso de explicitude.
A irmã dele chama René de autista – e com a mãe, que o telefona insistentemente, ele não troca uma só palavra por semanas. Ele afunda-se na depressão e vai suportando o peso invisível de uma culpa que não tem com quem compartilhar – mas que o pai adivinha, e que depois se confirma quando se revelam detalhes íntimos contidos no caderno da suicida.
Através de uma narrativa envolvente, atuações autênticas dos jovens atores e uma fotografia que provoca deslumbramento e frisson em altas doses, Aly Muritiba consolidou-se em Ferrugem não apenas como um cineasta com perfeito domínio técnico da linguagem, mas também um contador de estórias capaz de densidade e profundeza. Algo equivalente no ramo das séries pode ser visto na acachapante Euphoria, que já dichavamos aqui no site d’A Casa de Vidro.
Provavelmente, René vingou-se de Tati simplesmente por ela ter “cortado seu barato erótico” na cena do quase-beijo: quando o casal estava esquentando, quando ele movia suas mãos para tentar apalpar o bumbum dela, ela deu um stop no rolê pois percebeu que estava sem o celular. Poderia ser uma cena banal e cômica: dois jovenzinhos que deparam com um baita empata-foda na forma de um celular perdido. Sinal de uma geração que não é capaz de dar um foda-se pro celu nem mesmo na perspectiva de vivenciar um caliente amor carnal.
Mas este celular perdido, este beijo impedido, trará uma cascata de efeitos – “consequências também são compartilhadas”, diz o excelente poster do filme no qual o celular aparece em uma analogia com uma arma de fogo.
Ferrugem, deste modo, é um dos melhores filmes contemporâneos que lida com o vício em mídias sociais, a proliferação de uma cultura narcisista do selfie, a necessidade de refletirmos sobre novas psicopatologias que muitos já receitam que precisarão ser curadas através de uma terapia de detox digital.
Existe uma outra razão que fez com que Ferrugem falasse tanto para mim. Pouco tempo antes de assisti-lo, enquanto professor do IFG cotidianamente envolvido com os jovens do ensino médio para quem ensino filosofia, fui muito impactado por um caso ocorrido em nossa instituição. Refleti por muito tempo sobre o quanto não é nada fácil para instituições educativas lidarem com suicídios de jovens em seu seio. É um tema bastante tabu, apesar das iniciativas normalmente centradas no “Setembro Amarelo”.
Eu não o conheci pessoalmente, mas fui impactado pela estória de vida interrompida do estudante do IFG Yuri B. Oliveira, de 20 anos, cometeu suicídio em Jataí (Goiás) logo após ter postado sua carta de despedida como uma postagem no Facebook (que atingiria mais de 1.500 compartilhamentos). Segundo relatos assemelhados a boatos que circularam na caixa de comentários, Yuri escolheu um método de morte bastante espetacular: “ateou fogo em si depois de beber e espalhar líquido inflamável em si”. Algo que não deixa de evocar a imagem do monge budista que se auto-imolou e acabou na capa do disco de estréia do Rage Against the Machine.
O relato é pungente – Yuri fala, por exemplo, nestas suas últimas palavras, que seus órgãos não poderão ser doados pois estarão carbonizados… – e revela ainda todo um cuidado com seu post derradeiro, incluindo uma série de fotos suas em várias fases da vida. As definições de carta de suicídio também foram atualizadas para a era da internet…
Fenômeno peculiar, esta publicação de adeus no Facebook, este suicídio tornado público em post, revela novas facetas da psiquê atormentada na era que Paula Sibilia vê como dominada pelo Show do Eu. Nas redes onde dominam as selfies e as smiley faces, onde a positividade tóxica é um mandamento para os que querem popularidade, aqueles que não conseguem ser influencers muitas vezes sentem seu valor humano degradado caso vivam com escassez de curtidas ou coraçõezinhos digitais de Instagram.
Ferrugem coloca um dedo na ferida e provoca um debate pertinente. O enredo nos leva a pensar que há aqui toda uma problemática jurídica e política, explorada por Alice de Perdigão Lana, em seu livro Mulheres Expostas – Revenge Porn, Gênero e o Marco Civil da Internet. Mas há sobretudo novos desafios para a psicologia e para as neurociências diante daquilo que Anna Lembke chama de “Nação Dopamina”. Restam poucas dúvidas de que os transtornos mentais da juventude entraram em uma nova fase histórica com a proliferação dos celulares conectados à internet e à cultura da hipervisibilização e onivigilância. Mas dúvidas proliferam sobre os caminhos para enfrentar este enxame de problemas.
Parece-me ainda que fenômenos antigos, cantados por poetas neo-românticos mortos há décadas, ganham novas formas no Zapistão e novas encarnações entre os TikTokers, através de uma teia de afetos que podem até adentrar a digitalidade mas que remetem a paisagens emocionais já evocadas com eloquência por nossos melhores poetas: “há tempos são os jovens que adoecem / e há tempos o encanto está ausente / e há ferrugem no sorriso / e só o acaso estende os braços / a quem procura abrigo e proteção…” (R. Russo)
Por Eduardo Carli de Moraes
Publicado em: 07/11/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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